terça-feira, 2 de julho de 2013

MEDIDA PRATICAMENTE LEGALIZA TRÁFICO DE ANIMAIS


Traficantes de animais poderão ficar com espécies apreendidas. Medida do Conselho Nacional de Meio Ambiente admite a impossibilidade de fiscalizar o mercado clandestino

RENATO GRANDELLE
O GLOBO
Atualizado:2/07/13 - 11h30

Via Dutra: Rodovia federal é um dos caminhos para o tráfico de animais apreendidos no Norte do país, como os papagaios acima, para Rio e São Paulo. Fabiano Rocha/9-10-2008


RIO - Uma nova resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), divulgada na última quarta-feira, praticamente legalizou o tráfico de animais silvestres no país, segundo especialistas do setor. O órgão federal criou duas formas de tratar a fauna apreendida. Uma é o depósito provisório, em que qualquer pessoa pode comprar e manter até dez animais, mesmo de origem ilegal, por tempo indeterminado. Outra é a guarda por terceiros, em que o governo federal, sem infraestrutura para receber os animais, os entrega para voluntários.

O documento desestimula a criação legal de animais em cativeiro e permite que espécimes apreendidos sejam “regularizados”. A fiscalização precária torna inviável monitorar estes animais, que se reproduzem em cativeiro e podem ser revendidos. Hoje, a pena para o tráfico de animais silvestres é de seis meses a um ano, além de multa. Agora, na prática, passa a ser apenas a multa - que, de certa forma, é “recompensada” pela manutenção da posse do animal.

As propostas já eram discutidas pelo Conama há dois anos. O Conselho ressalta que o infrator responderá a processo e, enquanto isso, só ficará com o animal que sequestrou se quiser. Mas, optando por isso, será responsável por todos os cuidados do espécime, como alimentação, tratamento e notificação de sua morte.

- A outra hipótese é a guarda dos animais silvestres - destaca o Capitão Marcelo Robis, representante no Ibama do Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (CNCG). - É nossa consideração a pessoas que não têm estes animais, mas querem recebê-los.

Não se trata de uma mera cortesia. O país tem apenas 50 centros de triagem (Cetas), sendo metade deles administrados pelo Ibama. Estes locais seriam como “hotéis” para os animais apreendidos - eles ficariam sob cuidado de especialistas até terem condições para serem reintroduzidos na natureza ou doados para zoológicos.

Estes centros, porém, foram convertidos em “asilos”. Pela falta de infraestrutura e de funcionários, muitos animais morrem antes de sua transferência a um novo destino. Em muitos casos, os zoológicos não recorrem aos Cetas, por já deterem muitos exemplares das espécies apreendidas.

- O objetivo da medida do Conama é combater a falta de locais de destinação dos animais silvestres, e não acabar com o tráfico. Para isso, seria necessário uma política nacional, ou então vamos enxugar gelo - admite Robis. - Queremos trabalhar com o traficante, fazer com que ele se responsabilize oficialmente pelo animal. É uma possibilidade fantástica de criarmos um banco de dados que contribua com a fiscalização da fauna.

A maioria dos animais silvestres comercializados vem das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e tem como destino Rio e São Paulo. Os estados alegam que o contrabando é transportado em rodovias federais, onde suas polícias não podem agir.

Os conselhos federais de Biologia (CFBio) e de Medicina Veterinária (CFMV) divulgaram notas contra a resolução. Segundo o CFBio, o documento “cria insegurança jurídica e desestimula a criação legal (de animais silvestres) em cativeiro”. O presidente do CFMV, Rogério Lange, por sua vez, diz que “um bem roubado não pode ficar com o ladrão”.

- É uma transferência de responsabilidade, porque o Estado deve ser o gestor da fauna - condena. - Em 2011, uma lei complementar do governo federal já havia transferido aos estados e municípios os cuidados com os animais em cativeiro. Hoje observamos um período de vacância. Ninguém sabe o que deve fazer, porque a maioria das prefeituras não têm recursos ou profissionais para assumir este novo papel.

Moeda de troca nas eleições

Coordenador-geral da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), Dener Giovanini considera que uma situação excepcional - a impossibilidade de resgatar um animal apreendido - torna-se, agora, uma medida comum.

- Não há, no texto, a menor preocupação com o bem-estar do animal - acusa. - A maior punição imposta pelo documento é permanecer com o que roubou. A lei ambiental brasileira é leviana, uma falácia. Quem recebe multa nunca paga, e fica por isso mesmo. No máximo, terá que assistir a uma palestra ou distribuir algumas cestas básicas.

Tanto a lei de 2011 quanto a nova resolução do Conama tiram a biodiversidade das mãos do Estado. Para Giovanini, delegar a fauna a estados e municípios vai expor ainda mais os animais ao risco de extinção - além de convertê-los a uma moeda de troca:

- Os prefeitos poderão emitir um termo de guarda do animal silvestre, legalizando sua posse. É uma medida que podem usar, por exemplo, em busca de benefícios eleitorais.

O tráfico de animais silvestres movimenta em torno de US$ 2 bilhões por ano no Brasil. Cerca de 38 milhões de espécimes são retirados da natureza no país por causa dessa atividade. De cada dez indivíduos retirados de seu habitat, só um sobrevive às condições precárias de transporte e aos ferimentos.

Apenas as espécies mais valiosas costumam receber um tratamento especial. No mercado internacional, uma arara-azul-de-lear pode valer até US$ 60 mil; um mico-leão-dourado, US$ 20 mil. Há, também, espécies apreendidas clandestinamente pela indústria farmacêutica, que estuda substâncias químicas para produzir novos medicamentos. Alguns besouros amazônicos custam US$ 8 mil.

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